Eu uso inteligência artificial
(e todos os escritores e ilustradores vão querer me bater)
A revolução chegou. De novo.
Eu nasci em 79 e vi nascer o e-mail. Vi os MP3 passarem uma rasteira na indústria da música e depois os MP4 chacoalharem Hollywood. Entrei em uma rede social chamada Orkut e depois o no novíssimo e ultra avançado Facebook, enquanto Rubert Murdoch (um cara MUITO rico) comprava o Myspace por uma deslumbrante fortuna e revendia por 10% do preço original 6 anos depois. Elon Musk vai bater esse record. Redes sociais se multiplicaram, a audiência da Globo caiu e, as rádios são todas gospel e as bancas de jornal só vendem capinhas de celular.
Sinceramente, já estou ficando entediado de tanta revolução.
Mas antes que alguém levante a bola de comprar um sítio, criar porco e galinha e viver o sonho da contracultura hippie, eu vou traçar aqui a linha do bom senso: ferramentas estão aí para serem usadas e enquanto nenhuma delas se levantar para ir lavar a pilha de louça que tem na minha pia, é mais um brinquedo para a gente brincar.
E essas foram as boas notícias. Agora os problemas. Depois, boas notícias de novo.

As “inteligências artificiais” não são nem inteligências, nem artificiais e elas surgiram a partir de um treinamento baseado em toda produção humana. O motivo pelo qual este boletim semanal traz essa capiciosa imagem do homem cinza do queixo pontudo e olhos vazios aí em cima é porque monstruosos servidores analisaram zilhões de imagens de rostos na internet, tanto fotos quanto desenhos, produzidas por muitos milhões de seres humanos. Isso permitiu a máquina entender que com 99,99999999992% de certeza (fonte da percentagem: datatazzo) quando há um formato de rosto, um cilindro vertical fical logo acima e centralizado com uma fenda horizontal. E sobre esse, duas esferas, imitando o que nosso olhar entende como um rosto.
A IA copia as formas mais comuns, mas ela não sabe o que é um nariz ou uma boca. Não sabe de qual material é feito e nunca vai saber como é a estrutura óssea por trás da pele. É tudo um chute muito bem calculado. Como se desenhasse sem enxergar.
Esse processo de coleta de modelos ocorreu na surdina a partir de um conhecimento humano (compreender ossos, musculatura, sombras, luzes, texturas, etc) e nenhum artista foi remunerado pelo ensino ou por fornecer material - o que é sacanagem.
E essas máquinas foram disponibilizadas para qualquer pessoa na Terra, sem custo, fazendo com que eu, ao criar esse texto, pudesse pedir à máquina que me fornecesse uma imagem, assim tirando a possibilidade de ganho de um ilustrador ou designer.
Ou seja,

É o que eu acabei de fazer. Acessei habilidades que eu não tenho e não dividi meus ganhos. E em algum momento, gerando um relatório para a empresa ou um trabalho para a escola, você vai fazer também.
Então, nas áreas visuais, IA é só má notícia. Na música, acredite, também. E nas palavras, também?
Médio.
O processo de aprendizado da máquina foi o mesmo. A máquina “leu” a internet e identificou que sempre que as palavras “Bom dia, tudo bem?” surgiam, elas eram seguidas, em 99,999999377% das vezes (fonte: datatazzo) com palavras semelhantes. E, portanto:
O ChatGPT não sabe iniciar um diálogo e não sabe ser gentil. O ChatGPT não sabe que eu sou um humano e estou perguntando sobre seu estado físico / mental / emocional / me conte algo sobre você / como vai a vida. O ChatGPT não sabe que ele é um robô disponível para me ajudar com tarefas e perguntas. Tudo o que ele “sabe” é ser provocado por um comando e reagir com a análise estatística mais próxima, porque leu na internet (graças a textos que milhões de pessoas — eu inclusive — escreveram). O que é, de novo, sacanagem.
Portanto, não é exaaaaatamente uma inteligência. É um repetidor. Congruente, mas repetidor.
Assim como no caso dos ilustradores, a programação se serviu de uma produção de textos não remunerada e pode tirar o emprego de escritores. Mas não o meu.
Eu não sou o malvado detentor das plataformas de escrita ou de publicação (leia-se, o dono dos meios de produção), mas eu também não sou empregado operador de uma máquina. Eu sou o criativo e essa criação está, muitas vezes a serviço de uma produção de textos padronizada. Os textos padronizados podem sim ser substituídos por escritas de máquina. O ChatGPT é genial ao utilizar pedaços de informação para gerar textos jornalísticos, publicitários, manuais técnicos, textos jurídicos, etc, etc. Esse tipo de conhecimento requer muito pouca imaginação e variação. Aliás, desviar de padrões nesses casos pode até ser danoso.
Mas para mim, escritor de ficção, isso não vai acontecer.
Uma vez que a máquina “leu” a internet e identificou estruturas e padrões, ela pode reproduzir cuidadosamente, mas não pode seduzir. A leitura de toda a internet dá a máquina o acesso a todo conhecimento humano de onde ela extrai os casos mais frequentes, ou seja, uma média do conhecimento humano. Mas a média basta?
Sim para os profissionais do texto. Não para os escritores de ficção. As histórias estão todas lá. Se você pedir à IA para criar uma história nova, ela vai tirar a média de todas as histórias existentes de produzir algo… bem…
Então, por enquanto, se você precisa de um texto que atenda a média, vai lá que é de graça. Se você quer algo novo, ainda precisamos de um cérebro por trás.
Uma outra coisa que IA nenhuma vai entender é o subtexto, as sutilezas da construção humana. Sabe como Frankenstein é uma alegoria sobre a ousadia errática da ciência? Ou Duna é uma grande metáfora (e nem muito sutil) para a vida de Jesus Cristo? Ou o Alienista discutindo o que é normalidade ou padrão? Bem, a IA não sabe. Nem nunca vai saber.
Ok, conclusão até agora: eu não precisaria de IA para nada. Mas eu uso. Como assim?
Estava eu capiciosamente escrevendo um conto que envolvia uma certa passagem de um elfo misturando as ervas mais venenosas e perigosas outro dia quando um amigo me alertou: para quê citar essas três ervas? Esse texto pode cair na mão de adolescente ou de gente mal intencionada. Não tem porque ensinar biologia errada para a geral.
Pois! Por que eu gastei tempo pesquisando isso e colocando no meu texto? Mas o texto estava pronto e a data de envio se aproximava e eu ainda por cima estava com certa preguiça de pensar e lasquei no ChatGPT:
Escravo, me inventa aí uns nomes de ervas que não existem! Diligente, mandou-me logo 20:
“Luminária Verde” e “Esplendorosa Raiz" são ótimos títulos para uma música do Sidnei Magal, e “Tranquilissima” foi demonstração de preguiça, mas uns 70% ali deu para aproveitar muito bem.
Depois eu ainda passei por situações de “me diga 10 formas de demonstrar que uma pessoa odeia outra pessoa” e mais “10 nomes de estrelas” e mais nome de bicho que não existe, nome de bairros de cidades pequenas, nomes de raças alienígenas… todo o trabalho braçal e chatinho que é necessário fazer dentro de uma história. Eu poderia fazê-lo, eu sei fazê-lo, mas consome mais tempo do que eu gostaria enquanto estou desenvolvendo um raciocínio que não quero interromper.
Eu poderia ter contratado um estagiário, um assistente, mas cá estou eu batendo altos papos com um robozinho alucinado muito bom de estatística. Eu só não faço pesquisa aí dentro. Pesquisa é sério, tem que ter fonte confiável. Mas às vezes preciso de um bom mentiroso ao meu lado.
Cá estou eu, que não sou dono de modo de produção algum, seduzido pelo lado negro da força, evitando de gastar preciosos reales em um humano e alimentando a grande máquina de desinformação do capitalistmo. É a primeira vez que me vejo do lado errado da história.
Para a guilhotina comigo!
Maldita revolução.
Como revisora há 27 anos discordo que as IA sejam suficientes para profissionais do texto. Acho que podem ser para jornais e revistas que não estão nada preocupados com precisão e sedução e só com transmitir "algo" para o leitor. Mas profissionais do texto mesmo, não.