X-tudo
Brasil, essa terra magnífica onde prostituta se apaixona, cafetão tem ciúme, traficante é crente e não sente culpa, pobre é de direita e queijo virou X, igual ao twitter. E se o X levar presunto, ovo frito, uma alface murcha e uma fatia quase transparente de tomate vira o famoso X-tudo - da chapa do buteco direto para suas artérias!
E apesar da opulência, o x-tudo não é nem o pecado culinário mais ofensivo. Ele já foi em muito superado pelo cachorro quente. Nascido nas américas em pão, salsicha e uma melequeira chamada relish. A versão brasileira hoje já é um evento carnavalesco com tudo quanto é tipo de ingrediente que deixa o x-tudo com cara de Bela Gil.
Se isso te ofende, não olhe para o que fizemos com o sushi…
(não vou inserir imagem de nada disso aqui; este é um blog de família)
O cheese da questão (pegou?) é justamente esse: caiu na rede é peixe, a gente pica, tempera e refoga e chama de muito nosso. E não está errado. Os antigos davam a isso o nome de antropofagia. Mentira, não era não. Descobri agorinha que antropofagia é o mesmo que canibalismo. O que eu quero falar é do movimento antropofágico, um movimento artístico cujo nome não é tãããão longe assim da antropofagia.
(também não vai ter imagem disso aí não)
A proposta do movimento “tinha por objetivo a deglutição (daí o caráter metafórico da palavra "antropofágico") da cultura do outro externo, como a estadunidense e europeia e do outro interno, a cultura dos ameríndios, dos afrodescendentes, dos eurodescendentes e dos asiodescendentes, ou seja, não se deve negar a cultura estrangeira, mas ela não deve ser imitada.” (wikipedia)
Sabe quando o aluninho pega o trabalho do colega para copiar e o colega diz “copia mas não faz igual”?

E assim entendemos como a vida culinária imita a arte: o hot-dog era gringo, tinha um ingrediente e um molho. O dogão é brasuca, tem 157 ingredients, 12 condimentos e 48 bactérias e tem um nome que é *chef's kiss* do anglicismo de mau gosto. E apesar de termos testemunhado o nascimento do sushicha (o sushi de salsicha - novamente, sem fotos), o antropofagismo brasileiro ainda não encontrou seu limite. Vai vendo a pizza de brigadeiro. Ou, o… a deixa para lá.
Eu poderia discorrer sobre o samba, a feijoada e o candomblé e suas muitas influências estrangeiras, mas vamos ao que interessa, ou melhor, ao que me interessa. Me interessa escrever e não faltou sincretismo na literatura. Você talvez tenha estudado os movimentos literários na escola. Aqueles que eram assim:
Arcadismo ocorreu entre 1768 e 1836 e contradizia o Barroco
Romantismo ocorreu entre 1836 e 1881 e contradizia o Arcadismo
Realismo ocorreu entre 1881 e 1902 e contradizia o Romantismo
Hein? Hã? Pronto! Pronto! Já acordei.
Onde eu estava mesmo?
Ah, é, movimentos literários.
Pois bem, foda-se eles todos. A maravilhosa semana de arte moderna ocorreu em 1922 e foi o marco fundador do movimento literária modernista, cuja proposta era simplesmente romper as amarras dos movimentos literários anteriores e das formalidades acadêmicas dentro da literatura. Míseros seis aninhos depois, em 1928 foi que Tarsila e o Oswald de Andrade lançaram o manifesto do Movimento Antropofágico que não atacava o modernismo, mas abria ainda mais um leque de liberdades, permitindo ao artista brasileiro… bem, tudo. Qualquer coisa mesmo.
Passa 100 anos, estamos olhando para o ifood tentando decidir entre um poke, um yakissoba, um bibimbap, um burrito, um shwarma ou uma pizza de estrogonofe.
E na literatura? E nos quadrinhos?
Merma coisa! O leitor brasileiro pode ter certo receio de puxar da prateleira da livraria (se você conseguir encontrar uma livraria!) um livro de um autor brasileiro porque não se sabe o que vai encontrar. Mais pura verdade. Mas não é porque o livro brasileiro seja uma novela ou um drama de favela. É porque o escritor brasileiro é um cozinheiro de churrascaria, daquele tipo que serve costela, feijoada, risoto, sashimi e esfiha tudo no mesmo buffet. Lobisomem em São Paulo? Temos. Bruxas no agreste? Temos. Exorcismos à brasileira? Temos. Cinquenta tons de cinza? Ssassinhora como temos!
Um livro que misture tudo isso? Olha… fuçando bem…
No quadrinho não é diferente graças a poderosa força do mangá e do anime. O que tem de brasileiro talentoso inventando e reinventando o estilo é um absurdo. E tem gente mais fiel à raiz, tanto quanto tem gente se divertindo com a influência e abrindo possibilidades novas. Quer ver? Lê O Rei da Lata (que além de tudo é grátis!).
Isso é tudo fruto da grande revolução. E que revolução, que começou em 1922, ganhou fôlego em 1928, desembocou no Tropicalismo na década de 60 e em 1980, como a gente não conseguia mais por ordem nas influências e nas características das artes, meteu lá o nome de Pós-Modernismo e cabô o assunto. Resultado: a arte brasileira é…
Bem, eis aqui o problema: o que é a arte brasileira? O que é o livro brasileiro? O escritor brasileiro?
Mais ainda: o que é o brasileiro?
Brasil é tudo ao mesmo tempo. Com três séculos de colonialismo e mais outros dois recebendo ondas de migração, 210 milhões de habitantes e dimensões continentais, o que nos faz efetivamente brasileiros? Não tem uma característica física, psicológica, emocional ou cultural que define um brasileiro. Não tem nada que faça um amazonense chamado Tadashi, um sergipano chamado Munster, um paranaense chamado Silva ou um matogrossense chamado Schultz parecerem pertencer a uma mesma nação. E também não tem nada que os exclua de serem brasileiros.
É tudo filho dessa grande mulher de malandro que é a nação brasileira.
O que nos leva de volta à questão da arte. Não há traço definitivo para o escritor brasileiro, o que inclui, infelizmente, este que vos fala - uma vítima do excesso de influências externas e do caos interno. Já não é mole aqui dentro, mas não para de entrar mais coisa! Quem é que vai dar ordem nesse barraco?
Ser um escritor brasileiro não envolve escolher uma característica. Envolve escolher um monte delas para jogar fora! Mas quais? eu pergunto por aí.
Dois dolorosos conselhos que eu ouço nessa hora:
1) Ah, mas Felipe, escreve o que você gosta! (bom gente… eu tenho uma notícia bem estranha para dar…) e
2) Escreve algo que você que ainda falta ser publicado (o quê, na terra do shushicha da pizza de brigadeiro e das bruxas no agreste? O que que falta?)
Por enquanto, eu vou colocando as ideias no liquidificador e falando bobagem. De quando em vez, pinta uma coisa legal e eu publico por aí (ou por aqui!).
Uma coisa eu garanto: você não vai sair com fome.
Bêjo!
Hoje não vou recomendar livros, discos, hqs ou séries. Vai ver as coisas boas que estão lá em cima.
Tenho escrito mini contos que estão fazendo certo sucesso no threads. Me segue lá para ler (também tenho bluesky, insta, etc.
Esse aqui deu assunto. Chama-se Felipe vai à Praia:
– Felipe, onde foi que você arrumou esse café?!? – A essas alturas seu pai já espumava de raiva. Só faltava sair fumacinha das orelhas.
– Não é um simples café, é um mocaccino! – Respondeu o adolescente, ignorando a avalanche de emoções.
– Peguei ali na barraca. É claro, eu tive que explicar como fazer, mas não ficou nada mau! Quer que eu pegue um para você?
O pai fez menção de avançar, mas a mãe segurou levemente o braço.
– Isso não é jeito de responder seu pai! – A mãe buscava intermediar a batalha.
– Mas é só um café! Quer dizer, um mocaccino! O que tem?
– Puta merda, Felipe, por que não pode tomar uma cerveja como todo mundo? Ou uma caipirinha! – O pai voltava à carga.
– Mas eu já tomei uma caipirinha! No café da manhã! – Riu cínico.
– Ai, meu Deus... Dirce, olha esse moleque! Por que é que ele tem que fazer tudo diferente sempre? Dá para ao menos largar esse maldito caderno? Vai jogar uma bola!
– Já falei que estou escrevendo meu próximo livro. – Felipe retorquiu.
– Calma, Orlando, sua pressão…
– Calma, nada, Dirce! A gente trabalha o ano todo para juntar um dinheirinho e vir para a praia e esse menino não aproveita! Olha esse sol! Olha o calorão que está fazendo! Esse mar lindo! A brisa do mar! Cheio de mulher bonita! Está tocando um pagode, todo mundo alegre e ele tomando um café!
– Mocaccino!
– … tomando um mocaccino! Custa fazer parte do passeio?
– Eu estou aqui, com todo mundo!
– Fazendo o mínimo esforço! – O pai não largava o osso.
– E lá tem regra para ir para praia? Tem código de ética? Estou ofendendo a moral da praia? Onde está minha liberdade? Não posso ser livre para vir para a praia e tomar uma droga de um mocaccino? Se tem um código de ética me mostra onde está escrito porque eu nunca li nada do gênero! Você não está à vontade assim? Eu estou à vontade! E pretendo curtir minhas férias assim! Mãe, fala para ele!
– Orlando, deixa o menino…
– Deixo! Faz o que você quer! Mas precisa ficar de terno?
Pois é, querido. E vir morar em outro continente traz ainda um novo choque de realidade... Te perguntam: "és mesmo brasileira? Pois não parece!". E a pergunta que sempre fica no ar: "o que se parece, então, com 'ser brasileira'"?
Brasil. Brasis. Carregamos todos os nossos países (no plural) dentro da gente. E fica mais forte quando viajamos. Gostei do texto. Beijo daqui.