Não é fácil a gente ser um escritor nerd com uma inclinação para o gótico porque a gente não tem muito espaço por aí. Não tinha, ao menos. De uns 30 anos para cá filmes, livros, séries e quadrinhos tem deixado o infantil de lado e adotado um tom mais sombrio. Veja o Batman, de seu uniforme cinza com sobrancelhas brancas para a marvada capa preta.
E quando isso aconteceu, ali pela minha adolescência, as coisas foram se encaixando e eu percebi que essa estética tinha muito a ver comigo.
Em parte, culpa do Neil Gaiman, um dos autores contemporâneos mais versáteis (ele escrevia para TV, cinema, quadrinho, rádio, contos curtos, livros longos, etc e tudo isso mesmo antes de surgir a Netflix). E é claro, não podemos ter heróis, porque heróis são só seres humanos e um humano em algum momento vai lá e caga tudo.
Sou fã? Sou fã. Infelizmente. E o herói cagou? Rapaz, se cagou!
No meio de 2024, um podcast gringo levantou uns tapetes velhos e encontrou sujeira grave de Neil Gaiman embaixo. Juntou o relato de 8 mulheres desde 1986 até 2022 dando conta de casos de assédio e estupro. E lá vamos nós, é por isso que não podemos ter coisas boas. Elas sempre dão errado em algum momento.
(E não, não vamos julgar o mérito dos relatos das mulheres e muito menos o fato de o primeiro ter sido há quase 40 anos atrás. Foi, foi feio, foi grave e nesses casos ficamos SEMPRE do lado da acusação até que se prove o contrário, se é que é possível provar alguma coisa.)
Nem sempre um homem, mas sempre um homem.
Neste comecim de ano a história cresceu, atingiu mais veículos de mídia e virou assunto. Gaiman é um grande escritor. O que me tange agora é: o que eu faço com o fato de ele ser um grande escritor?
Ou, como tem dito o povo: separar ou não o autor da obra? Posso gostar de uma obra de uma pessoa podre por dentro? De um criminoso? Devo continuar seguindo? Posso consumir obras futuras? Devo queimar minha coleção toda? Posso comprar por centavos as obras das pessoas que estão se livrando das dela?
Li um bom punhado de artigos e substacks sobre “separar o autor da obra” no caso do Gaiman e também vi muita gritaria em redes sociais sobre o assunto. Tem gente que é veementemente contra e tem gente que é a favor. E os artigos mais sérios e opiniões mais balizadas dizem exatamente “tem gente contra e gente a favor, depende da sua consciência".
Ou seja, nada diz. A real é que é isso mesmo: depente da sua consciência e decida você o que fazer da sua vida e espere gritaria de um lado ou do outro. Mas antes de você se decidir por completo, vamos aos fatos?
Fatos enviesados, claro, porque sou eu escrevendo. Mas mesmo assim, fatos.
Primeiro fato : não é a primeira vez. Monteiro Lobato era racista. HP Lovecraft também. George Orwell denunciava seus amigos comunistas. Lewis Carrol era suspeito de ser pedófilo. JK Rowling (autora do Harry Potter) é uma declarada transofóbica e está neste momento engajada em uma luta contra movimentos de pessoas trans. Se cutucar bem a história de uns e outros por aí, a gente acha uns podres bem graves. Mesmo assim, nós como sociedade, não paramos de imprimir Monteiro Lobato, as vendas do Harry Potter vão bem, tem até edições novas saindo com design incrível e ela até tem lançado novas obras. Ninguém quer queimar todos os livros do Lobato em praça pública.
Segundo fato: como o primeiro fato ilustra, o mercado não vai abrir mão faturar em cima das obras das pessoas ruins. Tom e Jerry tem lá seus momentos meio racistas também.
A gente cresceu rindo dessas piadas racistas. E das cenas com cigarro, bebida e violência. E aí a Warner Bros achou por bem não cortar nenhuma dessas cenas, colocou a Whoopi Goldberg para fazer um aviso no começo do desenho argumentando que tirar as cenas seria fingir que elas nunca aconteceram e a seguir uma palavra dos nossos patrocinadores. A fúria incontrolável do capitalimo não vai permitir que obras com mensagens ruins ou feitas por pessoas ruins desapareça.
Terceiro fato: o bandido merece um julgamento justo e merece pagar por isso. Mas o pagamento do crime não envolve a obra. A punição por um assédio ou um estupro é cadeia, multa, reparação à vítima, não é o apagamento histórico. O culpado não deixou de existir, infelizmente. E vai continuar fazendo o que faz de melhor, o que não deixa de ser uma contribuição social. Ele muito bem pode escrever de dentro da cadeia. Acredito que essa seja a punição que as vítimas esperam, aliás. No Brasil, juízes que são pegos com a boca na botija são “punidos” com aposentadoria integral. Encerrar a carreira de um artista (como esses) é o mesmo caso, uma vez que já são milionários. JK Rowling, por exemplo, tem uma fortuna estimada em 802 milhões de libras. Se você queimar todos os seus livros, sabe o que acontece? Pois é.
Quarto fato: punir o livro é punir uma cadeia produtiva enorme. Afinal, não compramos o livro das mãos do próprio autor, né? Um livro que você comprar ali no shopping passa por agentes, editor, tradutor, revisor, diagramação, gráfica, transporte, divulgação, livraria e ainda paga imposto no Brasil. Todo mundo é punido junto. O autor recolhe, teoricamente, 8% sobre o valor de capa. O Gaiman ganha em libras, ele não está preocupado com os R$ 4,50 que vão chegar na mão dele, que, convertidos, não dá uma moeda.
Quinto fato: não haverá terceira temporada de Belas Maldições, nem segunda temporada de Sandman, o que são punições. Essas duas séries, baseadas nas obras de Gaiman já foram interrompidas porque Hollywood é frágil assim mesmo. Não porque Hollywood seja justa ou consiente ou nada. Mas sim, ele já está perdendo toneladas de dinheiro. E exposição e oportunidades.
Sexto fato: sempre tem alguém para lembrar que Monteiro Lobato era racista. E isso entrou para a história e não tem como apagar essa mancha do currículo. Enquanto Lobato não foi punido, não será lembrado somente pelo seu legado cultural para a literatura brasileira. Essa nota de rodapé vai junto, o tempo todo. E que assim seja para todos os artistas, que arquem com as consequências de suas ações, mesmo depois da morte.
A conclusão é a mesma: faça o que tu queres. Mas a gente não pode esquecer nunca que esse escroto barbarizou essas mulheres e que isso manche a carreira dele. E que também Gaiman sirva de exemplo para todos os outros homens, artistas ou não e que o mundo aprenda com sua história.
Merecemos homens melhores.
Bêjo, desculpa o clima pesado!
É muito legal descobrir bandas novas. Esses caras são uma banda desde 2014, mas no spotify a música mais famosa tem lá 200 mil escutadas. Eles conseguem ao mesmo tempo a objetividade de um rockão grunge e criatividade nos arranjos. Genial!
O Ninguém é um quadrinho do Jeff Lemire, baseado em O Homem Invisível de H. G. Wells e mostra essa misteriosa figura aí em uma cidade pequena dos EUA apavorando a população local enquanto procura por suas respostas. É bão demais!
Em 2020 saiu no Prime “Utopia” a história desses nerds aí tentando desvendar uma conspiração de pandemias de doenças perigosíssimas dentro das páginas de uma história em quadrinhos que nunca foi lançada. É muito boa, mas não passou da primeira temporada.
porra, esqueci de colocar ali o nome da banda que eu recomendei! É Riot in the Attic!
O lance, pra mim, é que o poder que permitiu a ele abusar e silenciar essas mulheres vem justamente da fama e do dinheiro que nós lhe demos. Continuar consumindo produtos que venham dele é continuar financiando um estilo de vida predatório, por melhor que fosse a sua escrita.
Eu digo sempre: tenho recursos limitados demais pra deixá-los chegar em gente que eu sei que vai usar da pior forma. Há outros livros a serem lidos, outras séries a serem vistas.