Extraindo o supra sumo das coisas
Vivendo a verdadeira experiência de não viver direito
Uma das minhas tarefas em casa é colocar minha filha para dormir com uma história. E às vezes, ela pede uma história que não é do livro, que eu tenho que inventar. E não é tão simples como parece tirar uma do bolso ali na hora.
Quando mais nova, ela acreditava nas minhas milongas todas e eu tecia todo um universo ao redor do meu antigo emprego de caçador de monstros. Eu andava pelas estradas deste país oferecendo meus serviços para reis, barões, donos de terras, prefeitos das cidades e comerciantes para eliminar golens, draconídeos, dríades, harpias, trolls, lobisomens e aparições. Para atacar essas bestas, eu usava minha fiel espada de lâmina de prata e ainda óleos, feitiços, poções e bombas.
Se esse contexto está parecendo levemente familiar, é porque eu chupinhei todo o universo de The Witcher. Eu contava para ela que havia aprendido tudo isso com o grande mestre Gerald de Rivia e que ela um dia seria caçadora de monstros comigo, como era a Ciri, a criança da profecia, mas que o treinamento dela ainda não começara porque eu vendi minha espada no Mercado Livre.
Calculei que dar esses recursos para ela diminuiria seus medos de monstros e do escuro, mas, pai idiota, criança não é massinha de modelar que a gente entorta para lá e para cá e minha filhota ainda tem medo do escuro, uma das coisas mais naturais do mundo. Mas o que ela perdeu foi o medo de inventar histórias.
Em dado momento, enquanto eu contava como eu estava contra a parede, longe da minha espada e o grande Wyvern se aproximava com suas presas sedentas, ela se jogava na história dizendo que chegava em um unicórnio (que voa) e pula nas costas do monstro, me dando tempo para desviar do ataque.
E aí ela assumia a história e todo o meu roteiro cuidadosamente construído em 3 atos com 2 plot twists, com clímax e anti-clímax ia por água abaixo e o universo de monstros era invadido por varinhas mágicas e feitiços de congelamento da Elsa de Frozen.
Pouco depois ela parou de acreditar que eu fosse realmente caçador de monstros porque monstros não existem. E eu argumentei que não existem mais porque eu era tão bom que não havia sobrado mais nenhum, mas não colou. Às vezes a gente cria uma cria mais esperta que a gente.
Mas antes dela me colocar para escanteio (no território das histórias) de quando em vez eu a desafiava para ela contar uma história para mim. Nas primeiras vezes, ela me olhou com olhos arregalados, talvez medindo a possibilidade de uma criança ser a contadora da história. Tem coisa que é coisa de gente grande, não tem? Contar histórias era uma delas. Mas aqui para nós, apesar de um pouco introvertida, tímida ela não é e saiu-se com:
“Era uma vez uma bruxa e aí ela caiu. Fim.”
Eu tenho certeza que entre o anseio de participar da sessão de contação de histórias e tentativa de atender ao meu desafio também havia uma generosa camada de tiração de sarro com a minha cara. Tá bom, moleca, você venceu dessa vez. Sua história é maravilhosa.
Dentre todos os recursos narrativos que ela domina, ela soube me entregar o filé mignon da coisa toda, o supra sumo, aquele miolinho central da história: personagem, plot, enrredo e um desfecho surpreendente.
Existe uma tonelada de maneiras diferentes de entregar uma história. Florear até deixar o leitor nauseado é uma delas. Ir direto ao assunto é outra. Construir lentamente o ambiente e chegar em uma conclusão épica é outra ainda. E ainda dá para mudar a ordem dos acontecimentos ou apresentar o clímax e depois voltar no tempo ou entregar peças soltas que depois façam sentido juntas ou ainda muitas outras.
Mas eu não sou devoto da suprasumacidade das coisas não. Eu não gosto de enrolar o leitor. Mesmo assim ir direto ao assunto, pá pum, tá aqui o que você pediu, me traz uma sensação de embalagem plástica em bandeija de isopor.
A crítica literária especializada talvez não veja sentindo na história da minha filha, mas aí há um contexto importante a considerar-se: criança de 5 anos já mais para lá do que para cá de sono, tendo brincado o dia inteiro. Então, não é uma tecnologia impressionante de contação de histórias, mesmo que tenha cumprido todas as exigências.
Existem histórias curtas, micro, nano, existem. Algumas muito famosas, como:
"Vende-se: sapatinhos de bebê nunca usados"
Este é de autoria do famosíssimo Ernest Hemingway um rapá com um controle sobre as palavras que era algo fora do normal. Ele nunca desperdiçou uma palavra e ainda assim conseguia transmitir a construção das coisas com uma delicadeza que, olha… Dá gosto de ler.
(Estou comparando minha filha ao Hemingway? É, né. Parece, Pai babão…)
Não dá taaaanto gosto de ler uma história de uma família que tem sapatinhos de bebê em casa, mas não chegaram a ser utilizados. As possibilidades que essas 26 letrinhas organizadas em 6 palavras abrem é uma angústia das brabas.
Tem como falar mal de uma história dessas?
Ou ainda, tem como falar mal de uma história que aproveita ainda uma dimensão do não-verbal, moldando pontuação como palavras de forma a romper a barreira entre literatura e design, assim como fazia a poesia concreta?
E você aí se achando o ápice da modernidade respondendo textos com um emoticon…
A mensagem tá entregue, a ambientação está lá, o enredo, o plot, respeita-se a inteligência do leitor, está tudo aí.
Até eu já cometi esse delito:
Então tá, o que é que tem de errado em extrair o tutano da história, despi-lá de tudo o que está sobrando e entregar só o que interessa?
Tudo e nada.
Tem livros de microcontos por aí, tem concursos, tem fãs e etc. É lógico que esse é um fenômeno recente, impulsionado pela forma como lidamos com informação no mundo. Hoje o mundo é uma avalanche constante de informações agressivas, não só a opressora publicidade e o cérebro realmente é incapaz de lidar com tanta coisa. E nem precisa, porque a informação é pesquisável e estará sempre disponível.
E isso deve causar algum efeito neuro qualquer coisa que os cientistas investigarão nas próximas décadas e trarão alguma conclusão que nem vou me arriscar a palpitar. Ou talvez não cause mal algum, vai saber.
O que me incomoda é: extrair o denso caldo do benefício principal da coisa e jogar as rebarbas fora é algo que acontece e muito com a gente, como se as rebarbas atrapalhassem o que o principal te dá. A gente perde toda a experiência da coisa e acaba inundado pelo benefício principal, pela sensação única e mal construída.
É o que a indústria fez com o chocolate: os aztecas usavam o grão de cacau fermentado e torrado misturado com água, pimenta, baunilha e outros condimentos em um ritual sagrado lá. O chocolate era, portanto, levemente adocicado. Dá uns séculos aí, joga-se fora todo o contexto religioso e econômico, as especiarias, os tempeiros e sobra só a pasta mole de cacau com gordura e açúcar. Só o doce, nada dos outros sabores. Aí chegou uma hora que a indústria percebeu que até o cacau podia ir embora e agora a barra da Nestlé é basicamente açúcar refinado e gordura hidrogenada.
E você pode reparar no supermercado, nem toda a embalagem tem a palavra “chocolate” nela. Isso é porque, pela lei brasileira, se não tiver cacau suficiente, não pode ter esse nome.
Tá aí o benefício principal: doce. Nada no seu caminho. O filé mignon da coisa. Aliás, é bom lembrar que o filé mignon são uns 2 kg de carne dentro de um bicho que pesa quase 1.200 quilos. Tudo bem que você não precisa roer o chifre, mas precisamos jogar tanta coisa fora?
Ir direto ao assunto me parece uma certa pornolização da coisa toda: não dá tempo nem de tirar a roupa, já chegou nos finalmentes.
Aí, pergunto: tem graça?
Ter, tem. Mas é uma graça curtinha, jogo rápido, sem muito aprochego, sem muito aprendizado, sem muita comunhão, sem muita experiência.
Aliás, vamos conversar sobre essa palavra: ‘experiência' — tá aí uma desculpa bem boa para você chegar nos finalmentes logo de cara sem ter que sobreviver a experiência em si. Toda vez que alguém saca essa palavra do bolso, eu até arrepio: “A gente quer que nossos clientes vivam a experiência de comer em um restaurante japonês de verdade". Certo, mas a única forma de viver a experiência de comer em um restaurante japonês de verdade é ir para as caralhas do Japão, meu amigo!
Comer sushi no shopping Iguatemi é exatamente o que te impede de viver a experiência de estar no japão. É o pornô do sushi: bom durante, acaba rápido, custa caro, qualidade discutível, não chega nem perto da coisa de verdade.
Ler microconto é por aí? É, é um pouco sim. É o pornô do livro. É a rapidinha em pé no muro com as calças no joelho.
Arte tem muitas definições explicações, mas nenhuma delas serve para grande coisa. Serve só para fazer citações em itálico, como por exemplo:
“Arte é aquilo para o qual você precisa reservar um tempo para apreciação.”
Eu sei lá onde eu li isso se é que isso já foi escrito em algum lugar. Mas me deixou pensando que às vezes a gente precisa comer um McDonalds enquanto dirige até a próxima reunião, mas nunca que eu consideraria isso um grande momento da vida. Eu com certeza me divirto no McDonalds, mas se eu tiver escolha, prefiro cadeira de madeira, talheres, guardanapo no colo, diversos pratos, goles de vinho entre as garfadas, música ambiente, boa companhia, conversa agradável e, definitivamente, tempo para mastigar e sentir sabores (no plural!)
Assim como em uma refeição, um livro entrega uma experiência — essa sim! — sensorial. Envolver e despertar a imaginação exige uns bons parágrafos, mas é bem possível que um bom autor, como Hemingway, te faça ouvir o barulho das ondas, sentir o calor do fim da tarde ou a textura das ostras na língua na beira do mar.
Ou você prefere se deitar em uma rede em um final de tarde de frente para uma paisagem incrível e ler um microconto? Lá isso é aproveitar o dia?
Amei! O último livro do Eduardo Galeano - o Caçador de Histórias- tem umas coisas assim... uns contos pequeninos que enfiam a faca na alma e deixam a gente de emoções peladas na rua!