Se eu cansei do assunto? Claro que eu cansei. Dá para largar o osso? Não, infelizmente, não. Porque o osso precisa ser roído até seu doloroso e insosso final, mesmo que lascas pulem no céu da boca, mesmo que caíam os dentes, mesmo que, sei lá eu, coisas ruins que acontecem quando a gente rói um osso.
O osso de hoje é a verdade, o mesmo osso da semana passada. Mas sem falar do filme Emilia Pérez. Aquilo ali deu errado em vários níveis e já tem gente descendo a lenha nela e na atriz e no diretor e fim.
Eu quero falar sobre liberdade e o grande algoz do artista, a verdade. E para isso, vamos usar um exemplo inovador e ousado: Emilia Pérez, o filme.
Ahhhhhhhh!!! Felipe, larga o osso!!
As notas que me faltaram no texto da semana passada sobre esse assunto modorrento é que ao criar qualquer coisa, o artista está se propondo a cutucar o mundo. Mudá-lo, provocá-lo, instigá-lo de alguma forma. Se não, de que serve a arte?
Serve para nada também, por que não? A arte pode simplesmente ocupar um espaço ou tempo e pronto, nada sai dali. É assim que se faz arte? Sim, se estamos apregoando sobre a doce liberdade da vida, por que não apregoar a liberdade de não propor nada? Não pensar? Não agir?
Em uma sociedade utopicamente justa e igualitária, eu deveria ter o direito de explorar os trabalhadores até juntar alguns bons bilhões de dólares e resolver influenciar até a presidência dos EUA, assim como eu deveria ter todo o direito de não fazer absolutamente nada e apenas olhar para as paredes, correto?
Teoricamente, correto. Na prática, incorreto. E potencialmente criminoso.
Na real, real mesmo, vai saber o que as leitoras da série de livros Sabrina das bancas de jornal sentiram e o que isso mudou na vida delas? Na real, vai saber o que é trabalhar para um bilionário? Será que nada disso tem consequência?
Tem, por causa do contexto. Por que não existe “não fazer nada". Se eu escolhesse não contribuir para a sociedade e não fazer nada de nada de nada, ainda assim eu ocuparia um espaço, consumiria água limpa, comida, roupas, assistência médica, etc. Portanto a minha escolha seria a de não contribuir, mas não de não consumir.
Justo? Correto? Moral? Limpinho? Sei lá, discute aí na sua cabeça.
E arte? Posso criar arte que não influencia em nada, não atinge ninguém? Não, não posso. Porque, saiba lá o que pode acontecer quando eu emitir uma opinião, um texto, uma cor, uma sílaba, uma nota musical. E, mais importante, saiba lá o que pode acontecer se eu criar um mundo fictício que em nada tem a ver com a realidade e que é apenas uma invenção da minha cabeça, sem compromisso com políticas ou contextos sociológicos. Bom, meu amigo, minha amiga, meus inimigos, o que pode acontecer é que essa obra, seja qual for, vai cair em algum contexto sociológico / político, quer assim se deseje, quer não.
Em outras palavras. Quero criar um filme sobre um México fictício onde as pessoas falam todos os tipos de espanhol e são burras e traficantes não precisam pagar pelos seus crimes. Legal, o artista cria isso. E o que acontece com a arte? Cai no mundo e é imediatamente comparada com o México real.
“Ah, mas o meu México é de mentirinha!”
Não existe mais mentirinha. Não existe ficção que seja 100% ficcional. Ora, é o jeito que nosso cérebro opera. Tudo o que acontece frente aos nossos olhos trafega pela memória em busca de experiências e informações correlatas para a gente saber se foge, se ataca, se pode comer, se é de vestir, de cheirar ou de ligar na tomada.
Afinal, como disse o grande filosófo contemporâneo Dr. House, pessoas mentem. Não, pera. Quer dizer ele disse isso, as a citação é para ser outra… Deixa eu ver… Ah, tá aqui: “Três homens da caverna vêem um estranho correndo com uma lança. Um foge, um luta, um sorri e o convida para um fondue. O último não viveu para passar seus genes adiante".
Ou seja, é do nosso cérebro avaliar as situações porque o homem das cavernas gentil e acolhedor morreu e não se reproduziu. Somos herdeiros do fujão. Ou do lutador. Não queremos novidades. Queremos julgar primeiro e decidir depois. Efeito colateral previsível da coisa toda: tudo o que acontece ao nosso redor é analisado em um contexto.
Mesmo que o ato de criação busque criar um universo fantasioso em uma galáxia distante há muito tempo atrás. E nessa galáxia, ninguém tolera o Jar Jar Binks. Porque, novamente, não existe ficção. A ficção é semi-transparente. Ela serve para a gente olhar para os outros e enxergar nosso reflexo. Nosso próprio ridículo.
E, em um pecado ainda maior do que não ter o tato de ser respeitoso com o contexto, existe aquele artista que quer justamente desafiar o nosso conceito de realidade e ficção e deixar todo mundo na dúvida. Será que foi isso mesmo que a Marina Abramovich fez?
Será que foi isso mesmo que Kanye West fez?
A Marina sim, o Kanye, não. Não mesmo. E aí a arte deixa de ser arte e vira crime.
Como explicar o Kanye West? Bom, muitos o consideram um gênio do rap, mas ele vai entrar para a história como o nazista mais estapafúrdio da história. Chamar esse puto de “polêmico” é como chamar Ghandi de um vizinho simpático. Ele causou escândalos a vida inteira e como rapper sempre andou na borda da lei, às vezes escorregando para o lado de lá. Mas como ele é bilionário, a lei pouco significa.
Para além de ser um revoltado exigindo igualdade, respeito e liberdade, como se esperaria dos atores dentro do movimento do rap, Kanye sentava-se em mesas espúrias e fazia declarações de simpatia ao nazismo.
Negro. Rapper. Nazista.
Sim, isso mesmo que você leu. Apesar das situações e declarações ali, quase no vamos que vamos, Kanye conseguiu se valer do direito à livre expressão que existe lá nos EUA (bem mais permissivo que o nosso).
E aí que essa semana ele perdeu a mão e toda a dúvida de se ele estava ou não criando uma obra de arte foi dissolvida.
Aconteceu tudo muito rápido. Dia 7 de Fereiro, ele publicou isso aqui no X (Twitter):
Tem alguma coisa de muito errado no mundo quando um bilionário negro pode postar apologia ao nazismo em uma rede mundial. Mas não foi só isso que ele fez, portanto inferimos que tem muitas coisas erradas com mundo.
No dia 9 de Fevereiro, dois dias depois, um domingo, aconteceu a final de futebol americano nos EUA, o famoso super bowl. Esse é um evento esportivo de maior audiência televisiva nos EUA, com um intervalo no meio do jogo onde se apresentam as maiores celebridades musicais (já teve Michael Jackson, Madonna, Lady Gaga, U2, Rolling Stones, Paul MacCarney, Bruno Mars, etc, etc). Com tudo isso de música e na final do campeonato, lógico, a publicidade é um acontecimento também. É o espaço televisivo mais caro dos EUA e em geral, o mais criativo.
Kanye West comprou um espaço nessa grade. Por US$ 7 milhões. 7 milhão de dólar! Para divulgar isso:
Sim, essa é o anúncio publicitário que ele “produziu". Real oficial.
E esse selfie bisonho na cadeira de dentista com um celular e sem conseguir nem falar direito divulgava a lojinha dele, Yeezy. Neste domingo (e nos três dias subsequentes), a lojinha oferecia um único produto. Uma camiseta. Uma única e simples camiseta branca por US$ 20.
Com uma suástica preta bem no meio.
Não durou muito. No dia 10 de Fevereiro (segunda) a conta de Kanye no X foi desativada, não se sabe se por ele mesmo ou pela plataforma, mas é sempre bom lembrar que o dono do X é o sul-africano fazendo o gesto nazista lá em cima. E a loja da camiseta foi desativada no dia seguinte, 11 de Fevereiro.
Por que esse preto é nazista, gente?!? Como assim? Faltou aula de história? Ou ele é completamente doido? Gênio do marketing? Artista muito a frente do seu tempo?
Se ele tivesse feito tudo isso, porém com QUALQUER outro tema que não fosse racista ou xenófobo, sim, eu acreditaria que essa foi uma ousada performance artística para confrontar os padrões sociais e etc. Mas como a arte não existe em ficção absoluta, no contexto do planeta Terra dos séculos XX e XXI, essas coisas só reforçam a teoria que o cara está completamente abublé das ideias.
É, é assim que surgem os vilões. Muito dinheiro e nenhuma sanidade.
Talvez a carreira musical dele tenha finalmente acabado e se ele sofrer algumas dúzias de processos, ainda sim será bilionário. E o mundo perdeu um bom rapper.
Bêjo
Por falar em rap, eu não ouço Kanye, mas eu ouço Iza. Caetano interpretou “Fé” em seu show mais recente e a letra é espetacular. Som do bom!
Você sabe o que é Afrofuturismo? É isso aqui. Uma ficção científica que respeita o contexto ancestral das fés e cultura negras, coisa que o Alê Santos faz muito bem em uma aventura incrível. E já até virou um RPG! Super sucesso.