É temporada do Oscar e a suntuosa noite de premiações cai bem no domingo de Carnaval esse ano. Cortando por fora da curva vem vindo a nossa, a única, a esperança de redenção de tudo quanto é brasileiro Ainda Estou Aqui, tragédia sobre o deputado Rubens Paiva assassinado pela ditadura militar, contada por seu filho. Com três indicações (Melhor Filme, Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Atriz) já está deixando o povo tudo com água na boca. Já dá até para ouvir Galvão Bueno berrando “Feeeernandinha Torres do Brasil!!”.
Se o filme levar um ou mais desses prêmios vai ser um Carnaval épico.
Se o Xandão mandar prender o Bozonaro nesse mesmo fim de semana aí o Brasil vem abaixo. Vamos ter que emendar o feriado do Carnaval no feriado do Natal.
E é por causa desse clima de "oba oba” e de "já ganhou” que aproveito essa semana para conversar sobre um fracasso.
Não, não o nosso fracasso. O nosso vai ganhar. Fé e esperança. Namasté, axé, saravá, salamaleikum, benza deus, desconjuro, pé de pato, mangalô três vezes.
Fracasso é o do francês que resolveu fazer um filme mexicano com atriz espanhola filmado na Europa e cheio de americano. Esse, meu amigo, retumbante fracasso de realidade.
Indicado ao Oscar, Emilia Pérez, o grande concorrente da Fernandinha é a história de um violento traficante que simula a própria morte para poder abandonar a vida de crimes e fazer a transição para mulher. E essa foi a primeira atriz trans indicada ao Oscar! O filme que retrata a violência brutal que os narcos mexicanos espalham por todo o país, matando (estimados) meio milhão de pessoa. O filme toca, portanto em pontos sensíveis.
E cagou em TODOS eles.
Que eu me lembre, assim de cabeça, as proezas foram:
O diretor é francês (e nunca pisou no México)
Filme inteiro filmado na Europa
O diretor não pesquisou o México (e confessou isso em entrevista)
A atriz principal não é mexicana (é espanhola)
O elenco principal não tem mexicanos
Cada ator usa expressões de sua região (tem venezuelano, espanhol, colombiano e americanos que falam um espanhol mequetrefe)
A personagem volta ao México e nunca paga por seus crimes cometidos e
A personagem termina o filme insensada como santa, uma grave ofensa às famílias dos mortos pelos narcotraficantes
Não bastasse esses absurdos todos, a Karla Sofía Gascón, atriz principal resolveu xingar a nossa Fernandinha e a brasileirada tudo foi a forra, encher o saco dela nas redes sociais. E, bem, brasileiro sendo brasileiro foram escavar os tweets antigos dela e encontraram todos os absurdos possíveis. A atriz é podre por dentro: ela se mostrou racista, preconceituosa e xenofóbica.
Assim fica difícil separar o autor da obra, né?!
Mas porque me interessa compartilhar tudo isso? Por que o diretor francês não entendeu um dos princípios mais básicos da ficção que é que…
A ficção tem que ter comprometimento com a veracidade. E, mais recentemente, com a realidade ética.
A verdade é que Emília Pérez é um filme de ficção. E em sendo ficção, de que importa se a atriz é espanhola? Se o filme é rodado na Suíça ou na China? Se o facínora se torna uma mulher e, arrependida de seus pecados funda uma instituição para apoio às criancinhas e é canonizada?
Afinal, Romeu e Julieta (escrita por um inglês) se passa na Itália. Cleópatra - A Rainha do Egito se passa… dãr… No Egito e foi estrelado Elizabeth Taylor e um punhado de gente branca (e ganhou 4 Oscares!)
E se o autor queria imaginar um Egito branco? Uma Itália onde se fala inglês? Para que serve todo esse realismo? Não é assim que se faz ficção? Com navinha espacial e tudo?
É ofensivo? Sim, mas antes, vamos falar de outra coisa:
Entra uma técnica de escrita chamada “suspensão da descrença”.
Suspensão da descrença é um combinado que o autor e o público fazem logo no comecinho de uma história.
É quando o autor já na primeira cena mostra uma nave espacial. Oras, eu e você sabemos que naves espaciais não existem. Existem aqueles foguetes que só sabem subir, mas não fazem curva, não tem janelinhas, não tem armas e não podem pousar em qualquer lugar e muito menos atingem a velocidade da luz.
Tá, mas e se?
E se houvesse? Vamos combinar que pode?
Aí você responde “tá bom” e a história continua.
Faz de conta que existem naves espaciais. E dentro dessa nave, um grupo de rebeldes, que luta contra o império opressor da galáxia leva os planos roubados da próxima grande arma do império. Mas! O império sabe e persegue os rebeldes.
Pronto, já embarcamos na história. Já estou torcendo pelos rebeldes porque essa luta eu já vi antes. Essa é a eficiência da suspensão da descrença: um elemento me desloca porém todos os outros são extremamente familiares, o que me deixa firmemente instalado dentro desse ambiente.
O mesmo vale para piratas, monstrons, vampiros, assombração, alienígenas, androides, universos paralelos, múmias, zumbis, super heróis, etc, etc, etc.
Isso quer dizer que a suspensão da descrença é um pouco frágil. E não tem nada mais frustrante para o público do que um autor que não cumpre o combinado. Dependendo do quanto você se importa com a história, você pode se envolver emocionalmente e participar desse universo que o autor criou. Até a hora que o autor escorrega e estraga a suspensão. Como quando no começo do filme o Superhomem ergue um trem dos trilhos com uma mão só e no meio do filme o Batman (um homem sem poderes) senta uma bulacha bem dada na cara do Homem de Aço e esse sai rolando morro abaixo.
Aí você fica “epa!” E a fantasia se desfaz toda e você perde a conexão com o universo e começa a enxergar que ali são apenas atores vestidos em roupas de borracha pendurados por fios em frente a um ventilador. E aí o autor falhou miseravelmente. Ou o produtor, o diretor, o pessoal dos efeitos especiais, sei lá, alguém.
E se eu me metesse a escrever a história de uma atriz trans que é indicada ao Oscar mas secretamente ela é uma baita racista, esse você nem começaria a ver. Não tem suspensão da descrença que dê conta.
Mesmo escrevendo fantasias, desvairadas, a gente fica escravo da verossimilhança. Ou seja, precisa chegar perto o suficiente da verdade para a gente continuar hipnotizado.
No caso de Emilia Pérez, o filme passou raspando na suspensão da descrença pelas plateias da Europa e dos EUA. Até aparecer para as comunidades latinas. Aí a máscara perdeu o elástico e caiu para o chão.
Hoje em dia, a aposta aumentou porque o volume de público aumentou muito. Em algum lugar da plateia tem um astrofísico repentido coisas como o planeta habitável mais próximo está a 1400 anos luz de distância e que não existem explosões no vácuo do espaço. E quando o filme sai, alguém está com tempo suficiente para parar quadro a quadro procurando um produtor desavisado que passou em frente às câmeras ou um microfone que apareceu pendurado em uma vara ou ainda um copo do Starbucks que a atriz trouxe para o set e esqueceu de esconder embaixo da mesa:

Além da mistureba de regionalismos e expressões em Emília Pérez, algo mais grave aconteceu: nossas histórias de fantasia não são apenas histórias de fantasias boiando no vácuo do imaginário.
Para começo de conversa, não existe fantasia. Se houvesse uma proposta real de uma exibição de, digamos, uma sociedade formada em outro planeta e em outra dimensão, as relações entre os habitantes, os modos, as hierarquias e a linguagem seriam tão exóticas que nós, público leitor, não teríamos interesse algum em acompanhar. A suspensão de crença não pode ser absoluta. Quando os autores criam uma civilização, espécie ou apenas um personagem que seja efetivamente diferente, nossa relação é de tamanho estranhamento que essa criatura só pode ser o inimigo, o invasor. Porque eles são diferentes como eram os indígenas para o europeu aqui nas américas. Pensando bem, a julgar pelo filme em pauta, ainda somos…
Tudo isso para dizer que:
Fantasia é como uma janela envidraçada, você vê lá fora mas enxerga um pouco de si mesmo.
Não é de graça, esse é o mecanismo preferido das crianças para entender o mundo. É uma fantasia calcada no real. A ficção se presta a explorar os absurdos da realidade e nisso, o filme errou grosso. Errou grave. Errou rude.
Mas o pecado original de Emilia Pérez é ainda maior do que isso. A proposta inicial do filme foi de um estrangeiro chegar dizendo “vou contar a sua história” para o México. E se alguém entra na minha casa para dar palpite na minha vida, é melhor ter feito muito bem feita a lição de casa. Afinal, para que serve essa história? É uma ficção, sim. É um “E se…?” mas porque essa história está sendo explorada? É para me alertar de um comportamento? É para me preparar para uma situação? Emilia Pérez serve para o público passar a entender o trafica como sendo bonzinho no fundo no fundo?
Como dizia a professora de português no fundamental: o que o autor quis dizer com essa história?
Em não sabendo nada sobre o México, insensar uma narcotraficante arrependida pegou mal…
Por fim, é sempre bom lembrar que enquanto as audiências sempre entram na sua obra com o espírito de “me encante! Estou aqui para sonhar!” Todo mundo tem um celular no bolso que alcança basicamente todo o conhecimento acumulado da humanidade e nenhum pudor de passar um raio-x no seu trabalho.
E ainda por cima tem uns que fazem dessa atividade proveitosos canais no YouTube, os quais eu me delicio assistindo. Se você achava que a vida do jornalista era difícil, ói nóis aqui.
Bêjo (vá ao cinema ver Ainda Estou Aqui!)
Me esborrachando de rir com a série Bookie. São os agenciadores de apostas mais incompetentes que o mundo já viu, vivem perdendo dinheiro e entrando em roubada. Quando a irmã do protagonista começa vender cogumelos alucinógenos é ó: *** chef's kiss ***. Participação especial do Charlie Sheen. Tem duas temporadas na HBO.
Direto das histórias do Cebolinha, Licurgo Orival Umbelino Cafiaspirino de Oliveira, o Louco tem carreira solo. Essa HQ magnífica mostra essa personagem fugindo do silêncio, em busca de um pássaro e é uma poesia visual única. Recomendado!